A revisão dos Planos Diretores das cidades brasileiras, conforme estabelecido pelo Estatuto das Cidades, deve ser realizada a cada dez anos. No entanto, na prática, essa regularidade muitas vezes não se concretiza. Além das mudanças de governo e das alterações de prioridades, atrasos frequentemente ocorrem devido a longas assembléias públicas e disputas judiciais, tornando raro encontrar cidades que cumpram rigorosamente esse prazo, considerado extenso frente à constante evolução urbana contemporânea.
Por coincidência, duas cidades pelas quais tenho grande afeição – Canela, minha cidade natal, e Porto Alegre, onde resido atualmente – estão atrasadas na revisão de seus Planos Diretores. Contudo, espera-se que, em ambas, as novas leis dos Planos Diretores sejam levadas à votação até a metade do próximo ano.
Isso significa que ambas as cidades estão atualmente imersas em pesquisas, consultas e intensas discussões públicas relacionadas à revisão de seus Planos Diretores.
Como um entusiasta do urbanismo, fico dividido entre a satisfação de ver o tema em debate e a frustração com a prevalência de opiniões pouco fundamentadas. Esse cenário reflete um problema na formação urbanística no Brasil, onde o urbanismo é frequentemente visto como arquitetura em grande escala, focando em projetos finais em vez de processos dinâmicos e contínuos.
É claro que todos os habitantes têm suas visões sobre o urbanismo, mas é essencial entender essas opiniões mais como observações iniciais do que soluções definitivas. A dependência de percepções leigas para resolver questões urbanas muitas vezes conduz a novos problemas, sublinhando a importância de abordagens técnicas e bem fundamentadas.
O urbanismo, em sua essência, é a manifestação física da economia, moldando espaços e caminhos na cidade para a movimentação e troca de pessoas, produtos e ideias.
Essa complexidade exige que, assim como em outras ciências, o urbanismo seja continuamente avaliado e mensurado. Os resultados dessas avaliações devem ser constantemente revisados para assegurar que estão em consonância com os objetivos estabelecidos, garantindo uma adaptação eficaz às necessidades urbanas em evolução.
Ao analisar as diversas ideias e propostas discutidas no campo do urbanismo atualmente, vejo um objetivo comum: a criação de cidades dinâmicas e seguras, ricas em lazer, cultura e entretenimento, com moradias acessíveis, um mercado de trabalho robusto, trânsito otimizado e sustentabilidade ambiental.
As principais divergências surgem quanto aos métodos para alcançar essas cidades ideais. Urbanistas desempenham um papel crucial nesse contexto, responsáveis por converter objetivos qualitativos em ações quantificáveis e monitorar o avanço da cidade rumo a essas metas.
No espectro dessas divergências, de um lado, defende que o município se concentre apenas na administração dos espaços públicos, deixando o desenvolvimento privado fluir conforme as dinâmicas de mercado. Em contraste, a visão oposta argumenta pela necessidade de uma intervenção governamental detalhada em no desenvolvimento urbano. Segundo esta perspectiva, o poder público deve estabelecer regulamentações rigorosas, que se estendem até mesmo ao âmbito do espaço privado, com o objetivo de garantir a qualidade do ambiente construído e promover uma estruturação urbana mais controlada e eficiente.
Infelizmente, a segunda abordagem, de planejamento urbano excessivamente regulamentado tem sido mais prevalente nas discussões que tenho presenciado. Essa visão tende a subestimar o papel dinâmico e adaptativo do mercado, ignorando sua habilidade de se ajustar continuamente às necessidades e desejos dos cidadãos urbanos. Tal falha não apenas omite a capacidade de resposta rápida do mercado a mudanças nas preferências e situações, mas também pode inibir o desenvolvimento orgânico das cidades. Planejamentos excessivamente regulamentados frequentemente falham em acompanhar essa agilidade, podendo distorcer o equilíbrio entre oferta e demanda. Isso resulta em um desenvolvimento urbano que nem sempre reflete as verdadeiras necessidades e desejos dos habitantes. Uma cidade excessivamente planejada pode, paradoxalmente, tornar-se uma cidade indesejada, ressaltando assim a relevância do mercado como um mecanismo eficiente para se adaptar às demandas urbanas em constante evolução.
Nas discussões sobre os planos diretores das cidades referidas anteriormente, observo uma tendência comum de simplificação do ‘mercado’ para se referir apenas às grandes construtoras, muitas vezes acompanhada de uma crítica excessiva dessas empresas por sua busca de lucro. É crucial entender que o mercado é, na verdade, composto por todos os habitantes da cidade. As construtoras não agem isoladamente, mas sim em resposta às demandas desse mercado mais amplo.
Elas alcançam lucro produzindo o que os habitantes necessitam e desejam. Nesse sentido, as construtoras, ao atenderem às demandas dos habitantes, são agentes fundamentais no aumento da oferta total de moradias nas cidades. Esse aumento de oferta, por sua vez, é um fator chave no equilíbrio entre oferta e demanda, contribuindo para a moderação dos preços das moradias.
Goiânia serve como um exemplo prático desta dinâmica. A cidade, de acordo com o último censo, superou Porto Alegre em população, experimentando um crescimento significativo nos últimos anos. Se o aumento da demanda por moradias em Goiânia não tivesse sido acompanhado por uma expansão correspondente na oferta, teríamos visto uma inflação considerável nos preços das habitações.
A expansão habitacional de Goiânia foi facilitada por uma abordagem urbanística flexível. Essa flexibilidade permitiu atender às demandas naturais e orgânicas do mercado de moradias, sem ser excessivamente limitada por regulamentações arbitrárias ou restritivas. Esse caso evidencia como a dinâmica de mercado, quando não cerceada por controles rígidos, pode responder de forma eficiente às necessidades de crescimento e habitação de uma cidade.
Em contraste com o exemplo de Goiânia, várias capitais brasileiras, incluindo Porto Alegre, vivenciaram um fenômeno distinto nas últimas décadas. Entre 1959 e 1999, o potencial construtivo no centro histórico da capital gaúcha foi severamente reduzido, caindo de 12 para menos de 2 vezes a área do terreno, uma diminuição de mais de 85% em algumas zonas. Esta restrição significativa na oferta ocorreu em um contexto de demanda crescente, visto que a população da cidade aumentou de 400 mil para 1,3 milhões de habitantes no mesmo período. Como resultado, a cidade experimentou uma expansão horizontal de sua malha urbana, marcada por baixa densidade demográfica.
Porto Alegre, juntamente com sua Região Metropolitana, possui uma densidade habitacional média de 4.400 habitantes por quilômetro quadrado, calculada a partir da densidade observada na mancha urbana da região. Em contraste, cidades como Barcelona e Paris apresentam densidades maiores, com 16.000 e 20.000 habitantes por quilômetro quadrado, respectivamente. Essa comparação sublinha que alta densidade populacional não é sinônimo de verticalização extrema. A densidade urbana é resultado de múltiplos fatores, incluindo o planejamento das ruas, a diversidade de usos do solo, políticas de zoneamento e influências culturais. Enquanto algumas cidades alcançam alta densidade com uma malha urbana compacta e uma mistura equilibrada de funções, outras dependem mais de edificações altas. Assim, a densidade urbana é um conceito que transcende a mera presença de arranha-céus.
Contudo, a densidade é geralmente sinônimo de vários benefícios notáveis. Uma alta densidade habitacional promove um ambiente ideal para comércios e serviços de rua, fomentando a caminhabilidade. Isso, consequentemente, aumenta a presença de pessoas nas calçadas, o que eleva a segurança local. Este aumento na segurança, por sua vez, cria condições ainda melhores para comércios e serviços de rua, gerando um ciclo positivo e autossustentável.
Além disso, em cidades densas, as distâncias entre residências e locais de trabalho são geralmente menores. Isso resulta na diminuição do tempo e dos custos com transporte, economizando tempo valioso para os moradores. Tal configuração urbana também contribui para a redução das emissões de gases de efeito estufa, visto que distâncias mais curtas tendem a significar menor dependência de transportes poluentes.
Paralelamente, a eficiência na distribuição de infraestrutura e serviços públicos, como saneamento, eletricidade, transporte público, escolas, hospitais e espaços públicos em áreas densas, se torna mais econômica per capita.
Portanto, a densidade populacional alta afeta positivamente vários aspectos da vida urbana, como mobilidade, sustentabilidade ambiental, eficiência econômica e coesão social, demonstrando que as implicações da densidade vão além das características físicas das cidades.
Para alcançar um aumento na densidade urbana de forma eficiente e sustentável, a colaboração entre o poder público e os agentes do mercado imobiliário é essencial. O papel do poder público envolve principalmente a revisão e flexibilização de normas reguladoras, como as de zoneamento e limites de construção. Tais mudanças permitem um desenvolvimento mais adaptável às necessidades atuais da população, possibilitando construções mais densas e diversificadas.
Além disso, o governo deve focar na qualidade dos espaços públicos. Isso inclui a manutenção e criação de parques, praças e vias adequadas para pedestres e ciclistas, contribuindo para a mobilidade urbana e para a qualidade de vida em áreas densamente povoadas. Espaços públicos bem planejados são cruciais em cidades densas.
Por outro lado, os agentes do mercado imobiliário desempenham um papel fundamental no atendimento à demanda por moradias e espaços comerciais. Eles são responsáveis por construir e oferecer tipos de propriedades que atendam às necessidades variadas dos habitantes da cidade, utilizando de maneira eficiente o espaço urbano disponível. A inovação em projetos de arquitetura e a adaptação às preferências e necessidades do mercado são aspectos chave para proporcionar uma densidade urbana funcional e agradável.
Portanto, para uma maior densidade urbana, é preciso um equilíbrio entre políticas públicas flexíveis e inovadoras e um setor imobiliário responsivo e dinâmico. Juntos, esses elementos contribuem para cidades mais compactas, eficientes e habitáveis.