As cidades funcionam como mercados de trabalho dinâmicos, onde a oferta de empregos e a demanda por mão de obra se encontram de maneira complexa. A eficiência desse mercado depende, em grande parte, da mobilidade urbana, ou seja, da capacidade das pessoas de se deslocarem entre suas residências e locais de trabalho de forma rápida e econômica. O Instituto Cidades Responsivas tem se destacado na análise dessa dinâmica ao medir o tempo médio de deslocamento entre moradia e trabalho nas cidades brasileiras, revelando um indicador crucial para a qualidade de vida urbana. A mobilidade urbana não é apenas uma questão de infraestrutura de transporte, mas também de planejamento urbano e alocação de recursos habitacionais.
Recentemente, o governo brasileiro anunciou uma medida que limita a 25% os recursos destinados à compra de imóveis usados pelo programa Minha Casa Minha Vida (MCMV), especificamente para a faixa 3, que inclui famílias com renda mensal de R$ 4,4 mil a R$ 8 mil. Em 2023, das 438,3 mil unidades financiadas, 27,3% eram de imóveis usados, o equivalente a 119,7 mil. Esta decisão levanta questões importantes sobre a alocação de recursos e a eficácia do programa em promover a inclusão social e econômica. A medida, a longo prazo, pode agravar o problema da segregação espacial, direcionando famílias a se estabelecerem em áreas periféricas, distantes dos centros de emprego, e aumentando o tempo e o custo dos deslocamentos diários.
Quantidade de Imóveis Usados em Áreas Urbanas Consolidadas
As áreas urbanas consolidadas das cidades brasileiras possuem uma grande quantidade de imóveis usados, muitas vezes localizados em bairros com infraestrutura desenvolvida e acesso a serviços públicos de qualidade. Estes imóveis representam uma oportunidade importante para o MCMV, pois permitem a inserção das famílias beneficiadas em áreas com melhor qualidade de vida e acesso a oportunidades de emprego.
Dados coletados pela Plataforma Place em Porto Alegre, após as enchentes de maio de 2024 no Rio Grande do Sul, revelam que há uma oferta considerável de imóveis usados à venda na cidade: 10.989 imóveis de até R$ 190.000 e 4.628 imóveis entre R$ 190.000 e R$ 220.000. Esses números demonstram o potencial para atender à demanda habitacional em áreas urbanas consolidadas.
Facilitar o financiamento de imóveis usados tende a promover o aumento da densidade média das cidades. A maior densidade urbana traz benefícios como a otimização da infraestrutura existente, a redução da necessidade de expansão urbana e a promoção de um ambiente mais sustentável. Áreas densamente povoadas geralmente possuem melhor oferta de serviços e comércios locais, facilitando a mobilidade a pé e o uso de transportes públicos, contribuindo para a redução do congestionamento e das emissões de carbono.
A Dinâmica de Desenvolvimento do Programa Minha Casa Minha Vida
Historicamente, o programa MCMV tem incentivado o desenvolvimento de empreendimentos habitacionais em áreas periféricas, onde os custos de terrenos são menores. Embora essa estratégia possa reduzir o valor total por unidade, o custo reduzido do terreno é repassado ao comprador do imóvel, aumentando sua despesa média de transporte diário.
A localização periférica dos novos empreendimentos impõe um custo significativo aos beneficiários, tanto em termos de tempo quanto de dinheiro. O deslocamento diário até os centros de emprego torna-se mais longo e caro, afetando negativamente a qualidade de vida dessas famílias. Este cenário contrasta fortemente com a potencial vantagem de adquirir imóveis usados em áreas urbanas consolidadas, que já contam com uma infraestrutura robusta e são mais próximas das oportunidades de trabalho.
Dados do Instituto Cidades Responsivas mostram que o tempo médio de deslocamento entre moradia e trabalho é um indicador crucial da eficiência urbana e da qualidade de vida. Áreas periféricas, muitas vezes, apresentam tempos de deslocamento significativamente maiores, prejudicando a inserção social e econômica dos moradores.
Além disso, grandes empreendimentos horizontais do MCMV muitas vezes resultam em uma repetição monótona de casas semelhantes, ocupando vastas áreas e carecendo de diversidade arquitetônica, integração com o entorno e serviços próximos. Isso desvaloriza a região e não promove uma vida urbana vibrante e sustentável a longo prazo.
A imagem acima apresenta diferentes tipos de ocupações para uma quadra urbana. Empreendimentos do MCMV geralmente se enquadram no modelo de casas unifamiliares, com índice de aproveitamento de 0,50 e taxa de ocupação de 25%. Esse arranjo é menos eficiente, ocupando mais espaço e oferecendo menor densidade habitacional, resultando em maior custo de deslocamento para os residentes.
O gráfico mostra a relação entre a Taxa de Ocupação (TO) e o Índice de Aproveitamento (IA) para diferentes formas urbanas. No canto superior direito, quarteirões de perímetro e volumes singulares sobre uma base demonstram alta densidade de ocupação e uso intenso do terreno. Empreendimentos do MCMV, no canto inferior esquerdo, refletem baixa eficiência no uso do solo. Urbanizações de alta densidade otimizam o uso do solo e melhoram a qualidade de vida. Ao favorecer novas construções em áreas periféricas e limitar recursos para imóveis usados, o MCMV subutiliza áreas urbanas consolidadas, aumentando custos de infraestrutura e transporte e limitando o acesso a oportunidades econômicas e sociais em áreas centrais.
Empreendimento projetado por Isay Weinfeld e desenvolvido pela incorporadora Magik JC, o Bem Viver Marques de Itu mostra que, mesmo dentro das definições atuais do programa Minha Casa Minha Vida, é possível construir empreendimentos em áreas consolidadas e promover densidade habitacional.
Argumentação para Limitar os Recursos em 25%
A decisão do Ministério das Cidades de limitar os recursos para imóveis usados a 25% atende a um pleito do setor da construção civil, que argumenta que os investimentos em novas moradias geram empregos e têm efeito positivo na arrecadação do FGTS, a principal fonte de financiamento do programa. A construção civil é um mercado forte e importante para a geração de emprego e riqueza no Brasil, e essa argumentação faz sentido no curto prazo. Desde o início do programa até dezembro de 2018, as obras geraram 3,5 milhões de empregos diretos, cerca de 390 mil empregos por ano, em média, segundo dados da CBIC (Câmara Brasileira da Indústria da Construção).
No entanto, essa abordagem pode ser um tiro no pé no longo prazo. Ao focar excessivamente na construção de novas moradias em áreas periféricas, o programa pode estar negligenciando os benefícios de possibilitar o acesso a imóveis usados em regiões urbanas consolidadas. Essas áreas, com mais ofertas de empregos, podem gerar um mercado de trabalho mais competitivo e valioso. Pessoas que vivem em áreas com melhor acesso ao emprego têm mais chances de desenvolver carreiras mais prósperas e, consequentemente, contribuir mais para o FGTS ao longo do tempo.
Impacto da Proposta no Mercado de Construção Civil
A implementação de um modelo composto que financie aluguel, compra de imóveis usados e novos no programa Minha Casa Minha Vida pode transformar significativamente o mercado de construção civil no Brasil.
A introdução de vouchers de habitação, redirecionaria parte da demanda para o mercado de aluguel. Isso criaria novas oportunidades para construtoras, incorporadoras e investidores interessados em projetos de moradias para aluguel. Isso atrairia fundos de renda imobiliária, que veriam oportunidades em novos empreendimentos, fornecendo o capital necessário para o desenvolvimento e a manutenção de habitações de qualidade. Esse movimento incentivaria a manutenção e renovação de propriedades existentes, melhorando a qualidade do estoque habitacional e promovendo um mercado imobiliário mais dinâmico e competitivo.
A ampliação do financiamento para a compra de imóveis usados fortaleceria o mercado secundário, aumentando a liquidez geral do mercado imobiliário. Isso facilitaria transações e estimularia maior atividade no setor. O maior ganho estaria na valorização das regiões consolidadas a longo prazo, com novas famílias e investimentos contínuos em reformas, refletindo a melhoria da infraestrutura e a maior demanda por imóveis bem localizados.
Manter o financiamento para a construção de novas unidades habitacionais, focando em projetos que promovam densidade urbana e uso misto, continuaria a gerar empregos no setor da construção civil. Projetos bem localizados, com fácil acesso a transporte público e serviços, seriam incentivados e evitariam a expansão desordenada, promovendo um desenvolvimento urbano mais eficiente.
No geral, essa proposta diversificaria as oportunidades no mercado de construção civil e para investidores, promovendo um desenvolvimento urbano mais equilibrado e eficiente. O setor se tornaria mais resiliente e adaptável às mudanças nas demandas habitacionais, enquanto a qualidade de vida dos beneficiários do programa seria substancialmente melhorada.
Experiências Internacionais e Viabilidade da Proposta
A proposta de um modelo composto que financie aluguel, compra de imóveis usados e novos no programa Minha Casa Minha Vida não é uma novidade. Diversos países ao redor do mundo já implementam abordagens semelhantes, integrando múltiplas estratégias habitacionais para atender melhor às necessidades de suas populações.
Nos Estados Unidos, o governo promove uma abordagem diversificada através de programas como a Section 8, que fornece vouchers de habitação para aluguel, garantindo que as famílias de baixa renda possam escolher onde morar. Além disso, o Federal Housing Administration (FHA) facilita a compra de imóveis usados com garantias de empréstimo, enquanto o Low-Income Housing Tax Credit (LIHTC) incentiva a construção de novas unidades habitacionais com créditos fiscais para desenvolvedores.
O Reino Unido também adota uma estratégia integrada. Programas como o Housing Benefit e o Universal Credit oferecem assistência de aluguel, enquanto o “Right to Buy” permite que inquilinos comprem suas casas a preços reduzidos, muitas vezes imóveis usados. Simultaneamente, o governo promove a construção de novas moradias sociais e acessíveis por meio de subsídios diretos e parcerias público-privadas.
Na Alemanha, o Wohngeld fornece subsídios de aluguel para famílias de baixa renda, enquanto o KfW (Kreditanstalt für Wiederaufbau) oferece financiamento para a compra e renovação de imóveis usados. O governo alemão também incentiva a construção de novas moradias através de subsídios e incentivos fiscais, apoiando desenvolvedores e cooperativas habitacionais.
Esses exemplos internacionais demonstram a viabilidade e os benefícios de uma abordagem integrada para a política habitacional. Adotar um modelo composto no Brasil pode não apenas diversificar as oportunidades no mercado de construção civil, mas também promover um desenvolvimento urbano mais equilibrado e sustentável. A experiência de outros países prova que tal modelo pode resultar em um setor habitacional mais resiliente e adaptável às mudanças nas demandas, enquanto melhora significativamente a qualidade de vida dos beneficiários do programa.
Esperamos que este pequeno artigo aumente a discussão sobre a importância de repensarmos o desenvolvimento urbano e as políticas habitacionais. É fundamental que as políticas públicas sejam orientadas para soluções que ofereçam qualidade de vida a longo prazo para as pessoas e promovam um desenvolvimento sustentável e eficiente das cidades. Somente assim poderemos construir comunidades vibrantes, responsivas e acessíveis.